QUE FAZER DESSE
SOL DOMINGUEIRO VERANEADO? (*)
DOMINGUEIRAS (01.05.11)
Já acordo no domingo procurando o meu cavalo branco (não o uísque, mas o animal) selado e arreado no terreiro de casa, pra me danar pelos ocos do mundo. Quando estou bem desperto descubro que estou em plena selva de concreto e asfalto, mesmo que algumas árvores dos canteiros da rua me remetam para o quintal do casarão de Ceará-Mirim. Fazer o que?
Vou para o meu “aquário”, um mirante que me expõe as ruas próximas e as dunas distantes, e encho os olhos de paisagens e de sonhos.
Um cachorro deposita os seus restos de lixo na calçada, e me lembro que quando criança nós entrelaçávamos os dedos indicadores e num repente, os excrementos do animal não fluíam mais, ficavam como que congelados entre o orifício e o espaço. Até que alguma senhora bondosa, numa zanga bem humorada nos fazia descruzar os dedos. E “plaft”, o sólido era atraído pela gravidade e se espatifava no chão.
A caminho do escritório, um sol veraneado e domingueiro me anima a tirar os óculos para captar de modo natural, sem anteparos, o mundo que me rodeia. É quando descubro um casal(?) de Galos de Campina. São velhos conhecidos. Quase sempre os encontro, no mesmo horário – entre 6 e 6.30 – bicando ciscos no chão.
Por isso tomei a decisão de sair todas as manhãs com a máquina fotográfica e nunca consegui flagrá-los, pois eles fogem tão logo me aproxime. Hoje tomei mais cuidado e fui me esgueirando pelo muro, sorrateiro, caviloso, dissimulado, e consegui chegar a uma distância que julguei suficiente para produzir uma obra de arte.
O sol no meu visor confundiu as imagens. E a minha visão, já cansada de 67 anos de “voyeurismo” existencial, sem os óculos, e com o olho direito aguardando o momento da cirurgia da catarata, completou o registro das dificuldades. Disparei o botão pedindo a Deus um milagre.
(Quando cheguei ao escritório e fui conferir as imagens, descobri que três das fotos esqueceram os pássaros e das três restantes, apenas uma distinguia as duas aves um exercício de adivinha. Estou decido a tratá-las no Photoshop para não admitir a derrota.)
A chave do cadeado escapuliu-me da mão e se projetou entre as grades do portão, caindo entre hibiscos do jardim da entrada. O portão impediu-me de recuperá-las. Pular o muro, nem pensar, com a cerca elétrica em funcionamento. Liguei para casa pedindo a duplicata e alguns minutos depois pude afinal entrar no meu refúgio.
Meu escritório é um caso à parte. É uma pequena construção térrea, composta por três peças: sala de estar/espera, sala de trabalho e banheiro. São apenas 40m² de área construída. Uma verdadeira caixa de Pandorra. Onde deveria ser a sala de espera, é também serventia de livros acondicionados em caixas de papelão e alguns equipamentos da antiga loja de artigos personalizados de minha mulher.
A sala de trabalho comporta a minha mesa de vidro em forma de “L”; três impressoras, um notebook e um computador de três módulos; duas poltronas azuis enormes; uma escrivaninha das antigas, integrante de um conjunto que inclui um divã em madeira e vime; uma mesa de reuniões com quatro cadeiras de vime; frigobar, som, estantes, estantes e estantes, livros, livros e livros.
Uma pequena pinacoteca com reproduções de Portinari (cangaceiros, instrumentistas e meninos caçadores e vendedores de pássaros); imagens de casarões e ruínas de Ceará-Mirim; e diplomas, títulos, medalhas. Um São Francisco de Assis Marinho e muitos gaveteiros.
É aqui que componho as minhas escrituras, reúno os amigos e atendo eventuais clientes.
Sentado diante do computador teclo essa crônica com o pensamento distante, embaralhando o que escrevo. Como estará Ceará-Mirim nesse dia de sol? Onde estaria no Ceará-Mirim o menino descalço, sem camisa, de calças curtas, mundo pequeno, curiosidade enorme, esperanças muitas, sonhos ilimitados?
Não sou lamurioso, nem vivo ancorado no passado. Sou homem contemporâneo, ajustado, tolerante, sem preconceitos. Mas que os domingos de sol veraneados são sumidouros de memórias, isso são...
Vou aguardar mais algum tempo para saborear um velho (Old) e honesto Parr e assuntar com os amigos e a família à beira da piscina, os muitos ufanos da terra Brasílica, beijada pelo sol e pela brisa que balança a palha dos coqueiros e assanha os cabelos das morenas.
Que cada um reencontre o seu Ceará-Mirim.
Bom domingo.
DOMINGUEIRAS (01.05.11)
Já acordo no domingo procurando o meu cavalo branco (não o uísque, mas o animal) selado e arreado no terreiro de casa, pra me danar pelos ocos do mundo. Quando estou bem desperto descubro que estou em plena selva de concreto e asfalto, mesmo que algumas árvores dos canteiros da rua me remetam para o quintal do casarão de Ceará-Mirim. Fazer o que?
Vou para o meu “aquário”, um mirante que me expõe as ruas próximas e as dunas distantes, e encho os olhos de paisagens e de sonhos.
Um cachorro deposita os seus restos de lixo na calçada, e me lembro que quando criança nós entrelaçávamos os dedos indicadores e num repente, os excrementos do animal não fluíam mais, ficavam como que congelados entre o orifício e o espaço. Até que alguma senhora bondosa, numa zanga bem humorada nos fazia descruzar os dedos. E “plaft”, o sólido era atraído pela gravidade e se espatifava no chão.
A caminho do escritório, um sol veraneado e domingueiro me anima a tirar os óculos para captar de modo natural, sem anteparos, o mundo que me rodeia. É quando descubro um casal(?) de Galos de Campina. São velhos conhecidos. Quase sempre os encontro, no mesmo horário – entre 6 e 6.30 – bicando ciscos no chão.
Por isso tomei a decisão de sair todas as manhãs com a máquina fotográfica e nunca consegui flagrá-los, pois eles fogem tão logo me aproxime. Hoje tomei mais cuidado e fui me esgueirando pelo muro, sorrateiro, caviloso, dissimulado, e consegui chegar a uma distância que julguei suficiente para produzir uma obra de arte.
O sol no meu visor confundiu as imagens. E a minha visão, já cansada de 67 anos de “voyeurismo” existencial, sem os óculos, e com o olho direito aguardando o momento da cirurgia da catarata, completou o registro das dificuldades. Disparei o botão pedindo a Deus um milagre.
(Quando cheguei ao escritório e fui conferir as imagens, descobri que três das fotos esqueceram os pássaros e das três restantes, apenas uma distinguia as duas aves um exercício de adivinha. Estou decido a tratá-las no Photoshop para não admitir a derrota.)
A chave do cadeado escapuliu-me da mão e se projetou entre as grades do portão, caindo entre hibiscos do jardim da entrada. O portão impediu-me de recuperá-las. Pular o muro, nem pensar, com a cerca elétrica em funcionamento. Liguei para casa pedindo a duplicata e alguns minutos depois pude afinal entrar no meu refúgio.
Meu escritório é um caso à parte. É uma pequena construção térrea, composta por três peças: sala de estar/espera, sala de trabalho e banheiro. São apenas 40m² de área construída. Uma verdadeira caixa de Pandorra. Onde deveria ser a sala de espera, é também serventia de livros acondicionados em caixas de papelão e alguns equipamentos da antiga loja de artigos personalizados de minha mulher.
A sala de trabalho comporta a minha mesa de vidro em forma de “L”; três impressoras, um notebook e um computador de três módulos; duas poltronas azuis enormes; uma escrivaninha das antigas, integrante de um conjunto que inclui um divã em madeira e vime; uma mesa de reuniões com quatro cadeiras de vime; frigobar, som, estantes, estantes e estantes, livros, livros e livros.
Uma pequena pinacoteca com reproduções de Portinari (cangaceiros, instrumentistas e meninos caçadores e vendedores de pássaros); imagens de casarões e ruínas de Ceará-Mirim; e diplomas, títulos, medalhas. Um São Francisco de Assis Marinho e muitos gaveteiros.
É aqui que componho as minhas escrituras, reúno os amigos e atendo eventuais clientes.
Sentado diante do computador teclo essa crônica com o pensamento distante, embaralhando o que escrevo. Como estará Ceará-Mirim nesse dia de sol? Onde estaria no Ceará-Mirim o menino descalço, sem camisa, de calças curtas, mundo pequeno, curiosidade enorme, esperanças muitas, sonhos ilimitados?
Não sou lamurioso, nem vivo ancorado no passado. Sou homem contemporâneo, ajustado, tolerante, sem preconceitos. Mas que os domingos de sol veraneados são sumidouros de memórias, isso são...
Vou aguardar mais algum tempo para saborear um velho (Old) e honesto Parr e assuntar com os amigos e a família à beira da piscina, os muitos ufanos da terra Brasílica, beijada pelo sol e pela brisa que balança a palha dos coqueiros e assanha os cabelos das morenas.
Que cada um reencontre o seu Ceará-Mirim.
Bom domingo.
(*) PEDRO SIMÕES NETO.
(*) O
autor, Pedro Simões Neto, foi advogado militante, Professor e Escritor ;foi
Pró-Reitor de Extensão Universitária da UFRN, além de ter exercido cargos de
relevância na administração Pública estadual no período do Governo Geraldo
Melo; faleceu em 1º/02/2013, após longo período de internação hospitalar.