sábado, 3 de agosto de 2013

CORRUPÇÃO, DEMOCRACIA E DESENVOLVIMENTO NO BRASIL(1)



Delson Lyra da Fonseca

Procurador da República

 

 

Sumário

1.      Introdução

2.      Conceito e características da corrupção

3.      A corrupção como obstáculo à Democracia
4.      Corrupção e Desenvolvimento Humano
a)      Evolução da Economia Nacional e Regional
b)      Evolução dos gastos da União na área social
c)      Transferências constitucionais da União para Estados
d)      A corrupção como obstáculo ao desenvolvimento
5.      Estratégias de enfrentamento
6.      Conclusão

1. Introdução
Todos temos direito a um governo honesto, livre de corrupção. Portanto, todos temos algo a fazer para que assim possa ser.
Pretendo abordar a corrupção como obstáculo à Democracia e entrave ao Desenvolvimento Humano no cenário brasileiro. Portanto, o enfoque pretende ser ético e político, em torno dos fatores que a determinam e dos efeitos particulares que acarreta no campo das políticas públicas. Longe da configuração e dos efeitos pretendidos no contexto do sistema legal.
É certo que a corrupção não é fenômeno novo, ao contrário, acompanha a humanidade desde seus passos mais remotos. Não respeita limites ideológicos ou partidários. Freqüenta com a mesma desenvoltura governos democráticos e autoritários, sejam eles ditos de direita ou de esquerda. Não faz por menos em razão do sistema econômico adotado, se capitalista ou estatal, se de plena liberdade de mercado ou  de absoluto dirigismo. Atua tanto no ambiente público quanto nos negócios privados. Não se limita em espaços territoriais: é uma realidade mais e mais globalizada.
Contudo, são inegáveis as evidências de que a corrupção apresenta profundas diferenças nos métodos, na dimensão, nas conseqüências e nos desafios do enfrentamento, em virtude do contexto político, econômico e social específico. Para exemplificar, não é sem razão a expectativa de que a gestão democrática, a transparência e a participação comunitária no controle dos gastos públicos podem resultar em maior eficiência social.
Mesmo ocorrendo em larga escala nas relações econômicas privadas, a goza de mais visibilidade e gera maior repulsa quando se refere ao setor público. Há a crença, até certo ponto ingênua, de que sua ocorrência no setor privado não causaria efeitos negativos no interesse da coletividade, enquanto nos negócios de governo esse prejuízo seria inerente.
Em países pobres, seu campo de incidência e seus efeitos são diversos se comparados com países desenvolvidos. Nestes, a corrupção pode comprometer o desempenho econômico, obstruir o desenvolvimento social e fragilizar a legitimidade do poder político. Naqueles, pode ser poderoso instrumento da concentração de riqueza e de poder político em favor daqueles que têm capacidade para pagar ou receber propinas.[1]
A corrupção pode minar a eficiência das grandes economias, mesmo em ambiente de mercado, do mesmo modo como  pode comprometer a gestão dos negócios públicos, ameaçar a democracia política, alienar os cidadãos no campo ético e viciar o processo eleitoral de escolha dos representantes do povo [2] e [3]. Além disso, impõe o deletério efeito dominó: sua prática em escalões superiores da administração se alastra pelos setores subordinados sem escrúpulos.
Por outro lado, mantém convívio estreito, imanente com o crime organizado. Essa relação se inicia na fase de preparação dos golpes, passa pelo emprego de mão-de-obra e tecnologia e culmina com a fase de aproveitamento dos resultados. Das falsificações à lavagem de dinheiro, tudo pode ocorrer. A hipertrofia do Estado e a concentração de recursos na economia de capital justificariam igualmente a corrupção e os crimes de expressão financeira. Esse ciclo se fecha com as inevitáveis passagens dos negócios ao crime, do crime aos negócios e as relações destes com o Estado que precisa ser controlado, não importa a que preço. A mais valia da corrupção e do crime necessitam do mercado (negócios) e do Estado para render melhor proveito econômico e político.[4]
Há ainda os que a consideram “vício social” e “cultura política” próprios do “caráter nacional” [5]. A “lei da vantagem”, irrecusável, existiria em favor dos mais espertos; não seria inteligente supor alguém não-corrupto, tudo dependeria das oportunidades e das relações. Para outros seria inerente à governabilidade e ao jogo do “livre” mercado[6].
Essas considerações introdutórias foram lançadas com a finalidade de apresentar generalidades importantes sobre a corrupção, suas características e efeitos, ponto de partida para limitar a abordagem aos seus objetivos.
Tratarei, superficialmente, da incidência da corrupção em setor determinado dos negócios públicos e sua influencia deletéria em programas oficiais destinados à implementação do desenvolvimento social.

2. Conceito e características da corrupção

A corrupção será aqui tratada numa acepção amplíssima, de qualquer ato ou omissão prejudicial ao desempenho do Estado em favor do interesse público, que tenha como determinante o desvio no exercício funcional motivado por interesse particular. Ou, ainda, o uso de cargo público para benefício particular, envolvendo sempre um agente público e um agente privado.

Expressa o saque espúrio contra o orçamento público, como fator determinante da ineficiência do Estado no combate à exclusão e às diferenças regionais. Contribui para aprofundar  o fosso entre ricos e pobres. Solapa a legitimidade dos governos e a moral pública. Ameaça a democracia política e aliena os cidadãos no campo ético. Alimenta a crença de que a República está à venda pelo melhor preço ofertado.
Assim, resulta fácil situar as áreas mais propícias à incidência da corrupção na esfera administrativa. O fenômeno se mostra mais intenso nas áreas de fiscalização e cobrança de tributos, atividades policiais e processos de licitação, contratação e pagamento de bem e serviços. Parece óbvio que assim seja, considerando que nesses contextos a presença do Estado e a hegemonia do poder que seus agentes podem facilitar a prática e valorizar o retorno financeiro espúrio.
Arrisco-me a ponderar, contudo, que esse quadro pode, em parte, ser resultante da menor visibilidade da corrupção em outras áreas da gestão pública, notadamente na formulação de políticas públicas.
Para obter mais recursos destinados a projetos educacionais e de saúde pública, seguindo a sistemática de transferências diretas de verbas do orçamento da União, por onde transita a imensa maioria dos gastos nesses setores, agentes do poder responsável podem manipular os dados estatísticos sobre o número de crianças na escola, ou o de mulheres grávidas e recém-nascidos com deficiência nutricional, ou o de vítimas da dengue. O passo seguinte é desviar o excedente e manipular as contas.
Nesse âmbito, a perversidade dos efeitos da corrupção começa com o comprometimento ético dos formuladores das ações destinadas a enfrentar os fossos de desenvolvimento social e se aprofunda no campo da constatação e do enfrentamento. De pouco adiantaria verificar a papelada do projeto e da prestação de contas, comumente apresentada com regularidade formal e assim aceita pelos organismos de controle, na maioria dos casos. O vício está na essência do que se fez ou deixou de fazer, exigindo avaliação mais profunda de conteúdo: da formulação da política às despesas realizadas.
Cuida-se de análise de pertinência e eficiência raramente feita.
Por outro lado, quando imaginamos a atuação dos mecanismos legais de combate à corrupção aplicados às ocorrências comuns, seja pelo viés da repressão criminal ou da improbidade administrativa, até é possível festejar vitórias, mesmo raras, refletidas na condenação de alguns poucos corruptos. Porém, mesmo que o erário seja ressarcido do prejuízo financeiro, algo mais raro ainda, a perda social materializada no sacrifício de vidas humanas, no analfabetismo gramatical e funcional crônicos, na manutenção de bolsões de fome e miséria, continuará como elo perdido na busca da dignidade humana.
Não há retorno possível. Nisto reside profunda diferença de abordagem e de tática de enfrentamento.

3. A corrupção como obstáculo à Democracia
A maneira como determinada sociedade está organizada politicamente e os mecanismos de controle do Estado postos à  disposição do Povo são armas fundamentais contra a prática da corrupção e seus efeitos deletérios na eficiência das ações de governo.
O Brasil está constitucionalmente configurado como um Estado de Direito, republicano, federativo e democrático, com fundamento na dignidade da pessoa humana. Entre seus objetivos fundamentais, interessa aqui lembrar os de garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer origem ou natureza. Estas linhas basilares se refletem mais objetivamente nos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos.
República, geralmente definida como forma de governo que se opõe à monarquia, mas que pode ser sentida como designativo de uma coletividade política com características de coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o povo[7]. Federativa porque sustentada em organização político-administrativa que compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e Municípios, dotados de igualdade jurídica e autonomia.
É democrático. Adotou um regime de Povo, cujo poder é exercido por meio de representantes eleitos ou diretamente, de onde emergem a democracia representativa e a participativa.
Na democracia representativa a coletividade influencia e decide acerca de seu destino e seus objetivos através do conjunto de instituições que qualificam a cidadania (partidos políticos, eleições, sistemas eleitorais) e culminam na escolha de representantes para os Poderes Executivo e Legislativo. Já a democracia participativa verifica-se pela participação direta e pessoal do Povo na formação dos atos (ações e políticas) de governo e no controle da gestão pública.
A democracia representativa é simbólica, formal, comumente fraudada, serve de legitimação a modernas formas de tirania. O Povo é mero adjetivo qualificativo. Por isso deveria ser mínima. A participativa, é a soberania popular em si, em eficácia e substância. É processo de participação do Povo na formulação da “vontade política” dos governantes. É, em si, um Direito Fundamental. O Povo é substantivo próprio. Por isso deveria ser máxima.[8]
O zelo com os fundamentos e princípios do Estado é indispensável à efetivação de seus objetivos e dos direitos fundamentais do Povo, que só sairão do papel, deixarão de ser meras palavras escritas quando convertidos em objeto de ações e políticas públicas. O sucesso nessa empreitada passa necessariamente pelo controle da corrupção.
Ora, esse quadro formal, de relações e instituições quase perfeitas, confronta-se com o Brasil da realidade. Somos o reverso disso. Temos uma democracia sem Povo, onde a Constituição é grosseiramente fraudada a cada instante.
Essa fraude pode ser vista nas traições dos nossos representantes, na hipertrofia legislativa do Poder Executivo, na vassalagem proveitosa do Poder Legislativo e, com maior gravidade, na incapacidade ou omissão do Supremo Tribunal Federal em exercer seu papel de corte constitucional na perspectiva do interesse do Povo. Afinal, onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edita, situar-se em oposição à vontade do Povo, declarada na Constituição, os juízes devem curvar-se à última e não à primeira.[2]
A manutenção da miséria persiste como importante “capital eleitoral”, sustentado no voto sob controle. As propostas lançadas na campanha não passam de promessas concebidas para permanecerem vã promessa. O candidato é envolvido na embalagem mais agradável possível no vale-tudo dos sofisticados recursos de propaganda e marketing, como um produto concebido para enganar o consumidor. As contas de campanha são insondáveis, os valores dos gastos situam-se imensamente acima das possibilidades dos candidatos e dos respectivos partidos.
Uma vez eleitos, as contas e os compromissos da campanha condicionam a governabilidade e se mostram concretamente em cifras e favores que irão determinar o preço da base governista no parlamento, as escolhas para as funções diretivas mais importantes, as opções orçamentárias.
Enfim, a política, nesse nível de concretude, é um jogo de altas apostas. Quem decide cobra o preço. O pagamento se dá sob imensa fraude em que o interesse privado espúrio sobrepuja o interesse público e o regaste do financiamento de campanha alimenta a corrupção e o crime.

4.      A corrupção como entrave ao Desenvolvimento Humano
Em que medida a escassez de recursos é determinante dos índices de exclusão social ?
A tentativa de resposta conduz a uma passagem superficial sobre os números da economia brasileira, dos recursos destinados pelo orçamento federal para as áreas sociais, das transferências constitucionais da União para os Estados e dos índices de desenvolvimento humano.

a.      Evolução da Economia Nacional e Regional
Sem apego a conceituação mais rigorosa, farei brevíssima passagem pelos índices relativos à realidade nacional e regional quanto ao crescimento econômico e aos gastos federais em políticas sociais, sempre confrontados com os índices de desenvolvimento humano.
Para tanto, a expressão desenvolvimento social será utilizada no sentido abrangente de conjunto de ações e políticas destinadas a assegurar a justiça social, a distribuição da riqueza,  a dignidade da pessoa humana, o respeito aos direitos individuais e sociais mais elementares: emprego e renda, moradia com água de qualidade e saneamento, educação, saúde, cultura e lazer.
Na última década, a economia brasileira registrou crescimento ano a ano, medido pela evolução do PIB per capita. No quadro nacional, saiu de R$ 2.227,00  em 1994, para R$ 6.437,00 em 2000. Nas regiões geográficas, a curva ascendente se repetiu no mesmo período, guardadas as diferenças que as caracterizam e desigualam:  no Nordeste, cresceu de R$ 1.004,00 para R$ 3.014,00; no Norte, de R$ 1.574,00 para 3.907,00; no Centro-Oeste, de R$ 2.051 para R$ 6.559,00; no Sul, de R$ 2.784 para R$ 7.692,00; e no Sudeste, de R$ 2.989,00 para R$ 8.774,00.
Aplicando o mesmo critério e os mesmos parâmetros em relação aos Estados que, nas respectivas regiões, obtiveram o pior IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano por Município) na avaliação de 2000, a cena se repete. O PIB per capita de Alagoas saiu de R$ 1.508,00 em 1995 para R$ 2.485,00 em 2000; no Acre, de R$ 2.021,00, para R$ 3.037,00; em Goiás, de R$ 2.614,00, para R$ 4.316,00; no Espírito Santo, de R$ 4.488,00, para R$ 6.931,00; e no Paraná evoluiu de R$ 4.865,00, para R$ 6.882,00 [9] e  [10].
Esses dados colocam às claras as profundas desigualdades regionais brasileiras, vistas a partir da relação entre os índices de desenvolvimento humano e o crescimento da economia, medido pelo PIB per capita. Os Estados das regiões Norte e Nordeste, apesar do crescimento verificado, continuam apresentando PIB per capita muito abaixo dos situados nas regiões Sudeste e Sul, bem como da média nacional.
O Rio Grande do Norte, apresentou o melhor IDH-M da região Nordeste em 2000, com 0,702. Todavia, quando inserido no ranking nacional, atinge a 18a posição; ao ser confrontado com os Estados que obtiveram o pior desempenho nas regiões Sul, onde o Paraná atingiu o índice de 0,786, ocupando o 6o lugar no ranking, e Sudeste na qual o Espírito Santo, com 0,767, é o 10o colocado, a distância é gritante.
b.      Evolução dos gastos da União na área social

Os programas sociais brasileiros, notadamente nas áreas de educação, saúde e previdência/assistência social, são custeados com recursos originários dos orçamentos fiscal e securitário da União, ou são submetidos a sistemas concentrados de captação e repasse, apesar da intensa municipalização ocorrida na execução nos últimos anos.

Na amostragem desses números, extraídos da execução do orçamento federal, e não da previsão, percebe-se a dimensão dos valores no período compreendido entre 1995 e 2001[11]. Na educação, o dispêndio manteve-se na média de 7 bilhões de reais ao ano; na saúde, situou-se em curva ascendente, entre 10 e 21 bilhões; na previdência e assistência, realizou-se em valores crescentes, entre 37 e 80 bilhões de reais.
c.       Transferências constitucionais da União para Estados[12]
O sistema brasileiro de distribuição da receita arrecadada através da tributação, prever duas formas básicas: 1) pela atribuição de competência para cobrar impostos sobre determinadas matérias econômicas; 2) pela repartição – com Estados, Distrito Federal e Municípios – da receita obtida pela União com a cobrança de determinados impostos.
Cuidarei aqui do segundo mecanismo, por conter mais equalibilidade, enquanto o primeiro depende de variável como o perfil econômico e gerencial de cada unidade federativa.
A Tabela 1, abaixo, espelha as transferências constitucionais realizadas pela União, nos exercícios fiscais de 1998 e 2003, para os cinco Estados brasileiros com melhor posição no último IDH-E, valores totais e per capita em reais:
Tabela 1
Estados
Transferências em 1998
Transferências em 2003
Totais
Per capita
Totais
Per capita
DF
80.767.233
39,37
183.331.039
89,37
SP
3.409.403.007
92,05
5.586.452.373
150,84
RS
1.261.168.506
123,79
1.921.921.484
188,64
SC
586.660.871
109,49
995.957.141
185,54
RJ
703.368.088
48,87
1.122.849.588
78,01
(*) O cálculo per capita foi realizado com base no Censo 2000 do IBGE

A Tabela 2, na seqüência, representa idênticos números relativos aos cinco Estados brasileiros com pior posição no último IDH-E, valores totais e per capita em reais:
Tabela 2
Estados
Transferências em 1998
Transferências em 2003
Totais
Per capita
Totais
Per capita
AL
448.108.519
158,56
875.482.985
309,59
MA
844.321.577
149,23
1.559.536.185
275,65
PI
479.294.035
168,56
909.875.480
319,99
PB
554.865.732
161,07
1.058.539.012
307,28
SE
467.995.815
262,20
898.480.858
503,39
(*) O cálculo per capita foi realizado com base no Censo 2000 do IBGE



 

Cabe um primeiro registro: a Tabela 1 – dos cinco campeões de IDH – é composta pelo Distrito Federal, por razões próprias, acompanhado de dois Estados da Região Sudeste (Rio e São Paulo) e dois da Região Sul (Rio Grande do Sul e santa Catarina), enquanto na Tabela 2 – dos cinco com pior desempenho – todos são da Região Nordeste.

É óbvio que a comparação entre os valores absolutos repassados aos Estados com melhor IDH (Tabela 1) são sobremodo superiores àqueles destinados aos Estados com pior desempenho nesse campo. Porém quando o confronto se faz entre os valores per capita, o quadro é bem diverso: os Estados com pior IDH (Tabela 2) receberam recursos proporcionalmente muito superiores. É certo também que a diferença entre densidades demográficas deve ser levada em consideração.

Mesmo assim, a escassez de recursos parece se sustentar só nos discursos. Houve crescimento econômico com perfil regional bastante próximo, os repasses de recursos também são substancialmente crescentes.
Contudo, a exclusão se mantém. Seria conseqüência inexorável da posição geográfica ou as gestões públicas nessa Região seriam ineficientes por sina própria ?
d. A corrupção como obstáculo ao desenvolvimento
Não é o caso de concluir que a corrupção seja o fator determinante desse quadro, o que levariam outra conclusão, sem melhor de comprovação, de que nos Estados com melhores índices de desenvolvimento humano a corrupção não incidiria nos negócio públicos ou incidiria em grau não comprometedor.
A realidade superficialmente exposta, mesmo com limitada base empírica, impõe uma reflexão acerca dos fatores determinantes de índices sociais tão negativos, de pobreza endêmica, de tamanha desigualdade, apesar do crescimento econômico e dos elevados gastos públicos programados para as áreas sociais.
Não se pode deixar de considerar a grande importância do modelo econômico que  prepondera diversamente nas regiões brasileiras, nem de atribuir peso razoável às diferenças climáticas. A concentração da propriedade e das rendas, a escassez de chuvas, o modo rudimentar de produção assinalam para a manutenção da pobreza, sem dúvida.
Não é verossímil ou seria sobremodo simplório afirmar que o quadro dos Estados que apresentam os piores índices de desenvolvimento humano, seja resultante da má sorte de sua localização na Região Nordeste. O volume de recursos destinados a políticas sociais indica possibilidade concreta de maiores e melhores investimentos na educação, na saúde, na produção, em condições de moradia.
Segue-se daí que seus índices de subdesenvolvimento social são decorrentes, também, de outras causas, cuja identificação aqui não é possível esgotar. Dados os limites e objetivos deste trabalho, considero relevante destacar: a) falhas de concepção em alguns programas, b) deficiências na execução e no controle e c) corrupção nas ações e políticas públicas pertinentes.
Os defeitos de concepção são inevitáveis, até pela dimensão do País e suas diversidades. Os planejamentos concentrados dificilmente atenderão bem a realidades tão diferentes. O problema se agrava quando, já nessa fase, deixa-se de estabelecer mecanismos eficazes de monitoramento, baseando-se, às vezes, na crença vã de que os administradores e fornecedores agirão honestamente. Não se deixe de considerar que a falha de concepção pode conter aquela brecha que irá viabilizar o desvio de finalidade e proveito espúrio na execução.
As deficiências na execução têm raiz na ausência de capacitação gerencial dos executores na ponta, pela falta de estrutura administrativa da maioria dos Municípios, somada às dificuldades e limitações no controle técnico e à ausência quase absoluta  do controle social.
Postos esses ingredientes, a corrupção grassa livre, alimentada pelo proveito do produto do desvio, inclusive, no financiamento de campanhas eleitorais, e da quase total impunidade.
Os números financeiros de sua prática são imprecisos e de pouca visibilidade. Os dados judiciais não os  indicam, as pesquisas econômicas não os dimensionam com precisão, mas fala-se em cifras nada desprezíveis: algo como seis mil reais ao ano para cada brasileiro.
Seus nefastos efeitos sociais são de difícil ou impossível reparação. Perversamente, o combate à miséria e o apelo em prol do desenvolvimento, mantêm as emergências e os grandes projetos de sempre (desemprego, fome, seca, transposição de águas do Rio São Francisco) como generosos espaços para a corrupção em alta escala.

5. Estratégias de enfrentamento

Este nefasto fenômeno, de dimensão econômica, política e social, é o sintoma, não é a doença. Enfrenta-lo sugere estratégias simples, principalmente no campo preventivo, tais como:

1.      A redução dos seus benefícios e a elevação dos custos de sua prática,

2.      A redução dos poderes unipessoais dos agentes públicos,

3.      Transparência sobre a gestão pública, através do acesso a da divulgação dos dados,

4.      Investimento em educação política,

5.      Capacitação da comunidade para o controle social,

6.      Aprimoramento e independência institucional dos órgãos de controle técnico,

7.      Ampliação de parcerias institucionais, nacionais e internacionais.

O controle sobre os atos da gestão pública, na sistemática brasileira, é realizado por organismos técnicos, integrantes dos sistemas de controle interno – formado por auditorias dos próprios órgãos – e externo, a cargo do Poder Legislativo respectivo, com o auxílio do Tribunal  de Contas correspondente, e pela sociedade, através da participação nas entidades de controle social. Tudo sem afastar a garantia constitucional de possível revisão pelo Poder Judiciário.
Os órgãos de controle técnico têm a eficiência limitada pelo reduzido quadro de especialistas, pela escassez de meios materiais e pelo controle político sobre suas ações e deliberações.
Na experiência federal, as atividades dos Auditores de Controle Interno são dirigidas e controladas por autoridade hierárquica centralizada nacionalmente, até mesmo para atender a solicitações específicas do Ministério Público.
No âmbito do Tribunal de Contas da União, seus Auditores não gozam de qualquer autonomia, nem mesmo aquelas atribuídas, por dever legal, a todo funcionário público, que, por exemplo, é obrigado a levar ao conhecimento do Ministério Público a ocorrência de fato possivelmente criminoso de que tomou ciência no exercício das funções. Tudo depende de expressa deliberação do Tribunal ou do Ministro relator do caso. O desfecho dos processos é demorado e nem sempre as decisões seguem as indicações técnicas.
Essa sistemática tem mantido o controle técnico quase exclusivamente em atividades posteriores e com poucas ações de campo. Raramente se conta com avaliação prévia ou concomitante à execução do programa. A virtualidade impera, assim como preponderam as auditorias em papéis que nem sempre expressam a realidade.
Já o controle comunitário tem a vantagem de está presente na cena dos fatos, o que permite a seus integrantes perceber de perto as táticas corruptas. Além disso, tem a prerrogativa máxima de impedir, pelo exercício do voto popular, o ingresso ou o retorno do administrador corrupto à cena política. Entretanto, sofre as fragilidades do baixo padrão de cidadania, refletido na incipiência da organização da sociedade e no seu pequeno interesse participativo, fruto da pouca prática democrática. Cria-se uma lógica negativa perversa: o cidadão não aprende a exercer o controle social, porque não o exerce; não o exerce, porque nunca aprendeu.
O Ministério Público tem atribuições e prerrogativas constitucionais que o qualificam como veículo fundamental posto à disposição da sociedade no combate à corrupção. Pode atuar diretamente, assim como, apresentar-se com parceiro do controle  social e técnico; pode atuar tanto preventivamente, quanto manejar os mecanismos sancionadores. Contudo, carece de conhecimento  do fato e domínio técnico, em boa parte dos casos e faltam-lhe recursos humanos capacitados em outros; é quantitativamente pequeno para tantos e pode ser omisso em outros.
Enfim, enfrentar a corrupção não é tarefa fácil, nem se pode esperar eficiência em ações isoladas, por mais categorizadas que possam parecer. A interface entre o controle técnico e o controle social deve ser vista numa relação de essencialidade e integração. Desse corpo surgirá também maior eficiência nas provocações ao Ministério Público e na sua própria atuação no Judiciário ou fora dele.

6. Conclusão
É indiscutível que as práticas  corruptas, como a má utilização, o desvio, a apropriação indevida de recursos públicos, atingem diretamente a cidadania. Não só porque impedem o fluxo e a aplicação regular desses recursos nas ações e serviços públicos, mas também porque geram intolerável descrédito nas ações do Estado em favor de seus cidadãos, agravada pela disseminada sensação de impunidade ou de punição tardia dos infratores.
Portanto, apresenta-se à sociedade e suas instituições de defesa e promoção de direitos o desafio de enfrentar esse nefasto fenômeno nas suas causas estruturais e nos efeitos deletérios sobre a cidadania, notadamente no contexto das políticas públicas e dos programas governamentais destinados à promoção de Direitos Humanos.
O ponto de partida consiste na indispensável avaliação da eficácia sobre o quê e como temos, todos, realizado nesse campo, visando aprimorar ações e estratégias de enfrentamento. A partir disso, fluirá a necessidade de mecanismos sociais e institucionais integrativos e capazes de contribuir para a efetividade da punição dos culpados e a busca de eficiência dos programas sociais indispensáveis ao desenvolvimento.
Isso implica na necessidade de mudar convicções e induzir atitudes; formar consciência política e capacitar a comunidade para o exercício de direitos; aprimorar e tornar independentes os agentes do controle técnico; aperfeiçoar e comprometer o Ministério Público no combate à corrupção como prioridade. É tarefa para todos, como naqueles sonhos que não se sonham só.

 



[1] - Síntese da conferência proferida no painel de abertura do Seminário Internacional “O combate à corrupção dos agentes  públicos nos países do Mercosul” em Porto Alegra/RS – dezembro de 2004


[2]  - (Alexander Hamilton, The Federalist n. 78) Cf. Luiz Roberto Barroso – Interpretação e Aplicação da Constituição, ed. Saraiva, São Paulo, 3ª edição, 1999, pg 161



[1] - Importantes estudos sobre as características, a ambientação e os efeitos da corrupção e seu enfrentamento mundial: A Corrupção e a Economia Global. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, produzidos sob a responsabilidade do Institute for International Economics.
[2] - Para os efeitos da corrupção nas grandes economias, ver matérias recentes na grande imprensa mundial sobre magníficas fraudes em balanços de companhia multinacionais e a influência nas bolsas e nas relações entre o Estado e a economia.
[3] - A Kroll e a Transparência Brasil realizaram uma pesquisa sobre percepções e experiências com fraude e corrupção no setor privado brasileiro, realizada no início do ano de 2002. Um total de 84 empresas participou do levantamento sobre fraudes e 92 da pesquisa a respeito de corrupção. Neste trabalho, corrupção é definida como o uso de cargo público para benefício particular, envolvendo sempre um agente público e um agente privado; fraude é o processo de enriquecimento ilícito ocorrido inteiramente no âmbito do setor privado.
O resultado dar a dimensão de tais práticas: a. 70% das empresas declara que já se sentiu compelida a contribuir para campanhas eleitorais e destas, 58% declararam ter havido menção a vantagens a serem auferidas em troca do financiamento. b. Metade das empresas consultadas que participam de licitações dizem já terem sido sujeitas a pedidos de propinas referentes a esses processos. c. Uma em cada duas empresas pesquisadas declara que já foi submetida a pedidos de propina referente a impostos e taxas; o relaxamento das inspeções é o principal “favor” obtido em troca de propinas. d. Quase todas as empresas (86%) consideram a fraude uma ameaça e 65% dizem já terem sido vítimas.
[4] - Sobre as relações entre crimes, negócios e Estado: ERNEST MANDEL – Delícias do Crime. São Paulo: Busca Vida , 1988, pág. 155 e seguintes.
[5] - Millor Fernandes representou esses sentimentos em charges hospedadas em seu site oficial.
[6] - Elio Gaspari, em “A Ditadura Envergonhada”, Cia. De Letras, 2002, faz referências a respeito,  ao descrever as perspectivas e as frustrações relatadas pelos Generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva da primeira fase do regime militar de 64.
[7] - DA SILVA, JOSÉ AFONSO – Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros Editores, 11ª edição, 1996, pag. 104 e seguintes

[9] - Os dados econômicos, demográficos e sociais foram colhidos no site do IBGE - Brasil 2000.
[10] - Para os registros sobre os Índices de Desenvolvimento Humano, foi utilizada e base de dados o IPEA – Novo Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil e Relatório do Desenvolvimento Humano 2002, disponível na Internet: www.undp.org.br
[11] - Gastos por área social, excluídas as despesas com pagamento de pessoal. Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional.
[12] - Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Os valores correspondem ao que foi repassado para cada Estado, nos períodos, à conta do Fundo de Participação Estados – FPE (constituído de percentual das receitas do IPI e do Imposto sobre a Renda, de acordo com o artigo 159 da CF)  e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEFE (constituído basicamente com recursos retirados das receitas que compõem o FPE e o FPM, art. 60 do ADCT)

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