Delson Lyra
da Fonseca
Procurador
da República
Sumário
1. Introdução
2. Conceito e
características da
corrupção
3.
A corrupção como obstáculo à Democracia
4. Corrupção e Desenvolvimento
Humano
a)
Evolução da Economia Nacional e Regional
b)
Evolução dos gastos da União na área social
c)
Transferências constitucionais da União para Estados
d)
A corrupção como obstáculo ao
desenvolvimento
5. Estratégias de enfrentamento
6. Conclusão
1. Introdução
Todos temos direito a um governo honesto, livre de
corrupção. Portanto, todos temos algo a fazer para que assim possa ser.
Pretendo abordar a corrupção como obstáculo à
Democracia e entrave ao Desenvolvimento Humano no cenário brasileiro. Portanto,
o enfoque pretende ser ético e político, em torno dos fatores que a determinam
e dos efeitos particulares que acarreta no campo das políticas públicas. Longe
da configuração e dos efeitos pretendidos no contexto do sistema legal.
É
certo que a corrupção não é fenômeno novo, ao contrário, acompanha a humanidade
desde seus passos mais remotos. Não respeita limites ideológicos ou
partidários. Freqüenta com a mesma desenvoltura governos democráticos e
autoritários, sejam eles ditos de direita ou de esquerda. Não faz por menos em
razão do sistema econômico adotado, se capitalista ou estatal, se de plena
liberdade de mercado ou de absoluto
dirigismo. Atua tanto no ambiente público quanto nos negócios privados. Não se limita em espaços territoriais: é uma
realidade mais e mais globalizada.
Contudo, são inegáveis as evidências de que a
corrupção apresenta profundas diferenças nos métodos, na dimensão, nas
conseqüências e nos desafios do enfrentamento, em virtude do contexto político,
econômico e social específico. Para exemplificar, não é sem razão a expectativa
de que a gestão democrática, a transparência e a participação comunitária no
controle dos gastos públicos podem resultar em maior eficiência social.
Mesmo ocorrendo em larga escala nas relações
econômicas privadas, a goza de mais visibilidade e gera maior repulsa quando se
refere ao setor público. Há a crença, até certo ponto ingênua, de que sua
ocorrência no setor privado não causaria efeitos negativos no interesse da
coletividade, enquanto nos negócios de governo esse prejuízo seria inerente.
Em países pobres, seu campo de incidência e
seus efeitos são diversos se comparados com países desenvolvidos. Nestes, a
corrupção pode comprometer o desempenho econômico, obstruir o desenvolvimento
social e fragilizar a legitimidade do poder político. Naqueles, pode ser
poderoso instrumento da concentração de riqueza e de poder político em favor
daqueles que têm capacidade para pagar ou receber propinas.[1]
A corrupção pode minar a eficiência das
grandes economias, mesmo em ambiente de mercado, do mesmo modo como pode comprometer a gestão dos negócios
públicos, ameaçar a democracia política, alienar os cidadãos no campo ético e
viciar o processo eleitoral de escolha dos representantes do povo [2]
e [3].
Além disso, impõe o deletério efeito dominó: sua prática em escalões superiores
da administração se alastra pelos setores subordinados sem escrúpulos.
Por outro lado, mantém convívio estreito,
imanente com o crime organizado. Essa relação se inicia na fase de preparação
dos golpes, passa pelo emprego de mão-de-obra e tecnologia e culmina com a fase
de aproveitamento dos resultados. Das falsificações à lavagem de dinheiro, tudo
pode ocorrer. A hipertrofia do Estado e a concentração de recursos na economia
de capital justificariam igualmente a corrupção e os crimes de expressão
financeira. Esse ciclo se fecha com as inevitáveis passagens dos negócios ao
crime, do crime aos negócios e as relações destes com o Estado que precisa ser
controlado, não importa a que preço. A mais valia da corrupção e do crime
necessitam do mercado (negócios) e do Estado para render melhor proveito
econômico e político.[4]
Há ainda os que a consideram “vício social” e
“cultura política” próprios do “caráter nacional” [5].
A “lei da vantagem”, irrecusável, existiria em favor dos mais espertos; não
seria inteligente supor alguém não-corrupto, tudo dependeria das oportunidades
e das relações. Para outros seria inerente à governabilidade e ao jogo do
“livre” mercado[6].
Essas considerações introdutórias foram
lançadas com a finalidade de apresentar generalidades importantes sobre a
corrupção, suas características e efeitos, ponto de partida para limitar a
abordagem aos seus objetivos.
Tratarei, superficialmente, da incidência da
corrupção em setor determinado dos negócios públicos e sua influencia deletéria
em programas oficiais destinados à implementação do desenvolvimento social.
2. Conceito e características da corrupção
A corrupção será aqui
tratada numa acepção amplíssima, de qualquer ato ou omissão prejudicial ao
desempenho do Estado em favor do interesse público, que tenha como determinante
o desvio no exercício funcional motivado por interesse particular. Ou, ainda, o uso de cargo
público para benefício particular, envolvendo sempre um agente público e um
agente privado.
Expressa
o saque espúrio contra o orçamento público, como fator determinante da
ineficiência do Estado no combate à exclusão e às diferenças regionais.
Contribui para aprofundar o fosso entre
ricos e pobres. Solapa a legitimidade dos governos e a moral pública. Ameaça a democracia política e aliena os
cidadãos no campo ético. Alimenta a crença de que a República está à venda pelo melhor preço ofertado.
Assim, resulta fácil
situar as áreas mais propícias à incidência da corrupção na esfera
administrativa. O fenômeno se mostra mais intenso nas áreas de fiscalização e
cobrança de tributos, atividades policiais e processos de licitação,
contratação e pagamento de bem e serviços. Parece óbvio que assim seja,
considerando que nesses contextos a presença do Estado e a hegemonia do poder
que seus agentes podem facilitar a prática e valorizar o retorno financeiro
espúrio.
Arrisco-me a ponderar,
contudo, que esse quadro pode, em parte, ser resultante da menor visibilidade
da corrupção em outras áreas da gestão pública, notadamente na formulação de políticas
públicas.
Para obter mais recursos
destinados a projetos educacionais e de saúde pública, seguindo a sistemática
de transferências diretas de verbas do orçamento da União, por onde transita a
imensa maioria dos gastos nesses setores, agentes do poder responsável podem
manipular os dados estatísticos sobre o número de crianças na escola, ou o de
mulheres grávidas e recém-nascidos com deficiência nutricional, ou o de vítimas
da dengue. O passo seguinte é desviar o excedente e manipular as contas.
Nesse âmbito, a
perversidade dos efeitos da corrupção começa com o comprometimento ético dos
formuladores das ações destinadas a enfrentar os fossos de desenvolvimento
social e se aprofunda no campo da constatação e do enfrentamento. De pouco
adiantaria verificar a papelada do projeto e da prestação de contas, comumente
apresentada com regularidade formal e assim aceita pelos organismos de
controle, na maioria dos casos. O vício está na essência do que se fez ou
deixou de fazer, exigindo avaliação mais profunda de conteúdo: da formulação da
política às despesas realizadas.
Cuida-se de análise de
pertinência e eficiência raramente feita.
Por outro lado, quando
imaginamos a atuação dos mecanismos legais de combate à corrupção aplicados às
ocorrências comuns, seja pelo viés da repressão criminal ou da improbidade
administrativa, até é possível festejar vitórias, mesmo raras, refletidas na
condenação de alguns poucos corruptos. Porém, mesmo que o erário seja
ressarcido do prejuízo financeiro, algo mais raro ainda, a perda social
materializada no sacrifício de vidas humanas, no analfabetismo gramatical e
funcional crônicos, na manutenção de bolsões de fome e miséria, continuará como
elo perdido na busca da dignidade humana.
Não há retorno possível.
Nisto reside profunda diferença de abordagem e de tática de enfrentamento.
3. A corrupção como obstáculo à Democracia
A maneira como determinada sociedade está
organizada politicamente e os mecanismos de controle do Estado postos à disposição do Povo são armas fundamentais
contra a prática da corrupção e seus efeitos deletérios na eficiência das ações
de governo.
O Brasil está constitucionalmente configurado como
um Estado de Direito, republicano, federativo e democrático, com fundamento na
dignidade da pessoa humana. Entre seus objetivos fundamentais, interessa aqui
lembrar os de garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem
de todos, sem preconceitos de qualquer origem ou natureza. Estas linhas
basilares se refletem mais objetivamente nos direitos e garantias fundamentais
individuais e coletivos.
República, geralmente definida como forma de
governo que se opõe à monarquia, mas que pode ser sentida como designativo de uma coletividade política com
características de coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o povo[7].
Federativa porque sustentada em organização político-administrativa que
compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e Municípios, dotados de
igualdade jurídica e autonomia.
É democrático. Adotou um regime de Povo,
cujo poder é exercido por meio de
representantes eleitos ou diretamente,
de onde emergem a democracia
representativa e a
participativa.
Na democracia representativa a
coletividade influencia e decide acerca de seu destino e seus objetivos através
do conjunto de instituições que qualificam a cidadania (partidos políticos, eleições, sistemas eleitorais) e
culminam na escolha de representantes para os Poderes Executivo e Legislativo. Já
a democracia participativa
verifica-se pela participação direta e pessoal do Povo na formação dos atos (ações e políticas) de governo e no
controle da gestão pública.
A democracia representativa é
simbólica, formal, comumente fraudada, serve de legitimação a modernas formas
de tirania. O Povo é
mero adjetivo qualificativo. Por isso deveria ser mínima. A participativa, é a soberania
popular em si, em eficácia e substância. É processo de participação do Povo na
formulação da “vontade política” dos governantes. É, em si, um Direito
Fundamental. O Povo é
substantivo próprio. Por isso deveria ser máxima.[8]
O zelo com os fundamentos e princípios do
Estado é indispensável à efetivação de seus objetivos e dos direitos
fundamentais do Povo, que só sairão do papel, deixarão de ser meras palavras
escritas quando convertidos em objeto de ações e políticas públicas. O sucesso
nessa empreitada passa necessariamente pelo controle da corrupção.
Ora, esse quadro formal, de relações e
instituições quase perfeitas, confronta-se com o Brasil da realidade. Somos o
reverso disso. Temos uma democracia sem Povo, onde a Constituição é
grosseiramente fraudada a cada instante.
Essa
fraude pode ser vista nas traições dos nossos representantes, na hipertrofia
legislativa do Poder Executivo, na vassalagem proveitosa do Poder Legislativo
e, com maior gravidade, na incapacidade ou omissão do Supremo Tribunal Federal
em exercer seu papel de corte constitucional na perspectiva do interesse do
Povo. Afinal, onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edita, situar-se em
oposição à vontade do Povo, declarada na Constituição, os juízes devem
curvar-se à última e não à primeira.[2]
A manutenção da miséria persiste como
importante “capital eleitoral”, sustentado no voto sob controle. As propostas
lançadas na campanha não passam de promessas concebidas para permanecerem vã
promessa. O candidato é envolvido na embalagem mais agradável possível no
vale-tudo dos sofisticados recursos de propaganda e marketing, como um produto
concebido para enganar o consumidor. As contas de campanha são insondáveis, os
valores dos gastos situam-se imensamente acima das possibilidades dos
candidatos e dos respectivos partidos.
Uma vez eleitos, as contas e os compromissos
da campanha condicionam a governabilidade e se mostram concretamente em cifras
e favores que irão determinar o preço da base governista no parlamento, as
escolhas para as funções diretivas mais importantes, as opções orçamentárias.
Enfim, a política, nesse nível de
concretude, é um jogo de altas apostas. Quem decide cobra o preço. O pagamento
se dá sob imensa fraude em que o interesse privado espúrio sobrepuja o
interesse público e o regaste do financiamento de campanha alimenta a corrupção e o crime.
4.
A corrupção como entrave ao Desenvolvimento Humano
Em que medida a escassez de recursos é determinante
dos índices de exclusão social ?
A tentativa de resposta conduz a uma passagem
superficial sobre os números da economia brasileira, dos recursos destinados
pelo orçamento federal para as áreas sociais, das transferências
constitucionais da União para os Estados e dos índices de desenvolvimento
humano.
a.
Evolução da Economia Nacional e Regional
Sem apego a conceituação
mais rigorosa, farei brevíssima passagem pelos índices relativos à realidade
nacional e regional quanto ao crescimento econômico e aos gastos federais em
políticas sociais, sempre confrontados com os índices de desenvolvimento
humano.
Para tanto, a expressão desenvolvimento social será utilizada no
sentido abrangente de conjunto de ações e políticas destinadas a assegurar a
justiça social, a distribuição da riqueza,
a dignidade da pessoa humana, o respeito aos direitos individuais e
sociais mais elementares: emprego e renda, moradia com água de qualidade e
saneamento, educação, saúde, cultura e lazer.
Na última década, a economia brasileira registrou crescimento ano a
ano, medido pela evolução do PIB per capita. No quadro nacional, saiu de
R$ 2.227,00 em 1994, para R$ 6.437,00 em
2000. Nas regiões geográficas, a curva ascendente se repetiu no mesmo período,
guardadas as diferenças que as caracterizam e desigualam: no Nordeste, cresceu de R$ 1.004,00 para R$
3.014,00; no Norte, de R$ 1.574,00 para 3.907,00; no Centro-Oeste, de R$ 2.051
para R$ 6.559,00; no Sul, de R$ 2.784 para R$ 7.692,00; e no Sudeste, de R$
2.989,00 para R$ 8.774,00.
Aplicando o mesmo critério e os mesmos parâmetros em relação aos
Estados que, nas respectivas regiões, obtiveram o pior IDH-M (Índice de
Desenvolvimento Humano por Município) na avaliação de 2000, a cena se repete. O
PIB per capita de Alagoas saiu de R$ 1.508,00 em 1995 para R$ 2.485,00
em 2000; no Acre, de R$ 2.021,00, para R$ 3.037,00; em Goiás, de R$ 2.614,00,
para R$ 4.316,00; no Espírito Santo, de R$ 4.488,00, para R$ 6.931,00; e no
Paraná evoluiu de R$ 4.865,00, para R$ 6.882,00 [9] e [10].
Esses dados colocam às claras as profundas desigualdades regionais
brasileiras, vistas a partir da relação entre os índices de desenvolvimento
humano e o crescimento da economia, medido pelo PIB per capita. Os
Estados das regiões Norte e Nordeste, apesar do crescimento verificado,
continuam apresentando PIB per capita muito abaixo dos situados nas
regiões Sudeste e Sul, bem como da média nacional.
O Rio Grande do Norte, apresentou o melhor IDH-M da região Nordeste em
2000, com 0,702. Todavia, quando inserido no ranking nacional, atinge a
18a posição; ao ser confrontado com os Estados que obtiveram o pior
desempenho nas regiões Sul, onde o Paraná atingiu o índice de 0,786, ocupando o
6o lugar no ranking, e Sudeste na qual o Espírito Santo, com
0,767, é o 10o colocado, a distância é gritante.
b.
Evolução dos gastos da União na área social
Os programas sociais
brasileiros, notadamente nas áreas de educação, saúde e previdência/assistência
social, são custeados com recursos originários dos orçamentos fiscal e
securitário da União, ou são submetidos a sistemas concentrados de captação e
repasse, apesar da intensa municipalização ocorrida na execução nos últimos
anos.
Na amostragem desses números, extraídos da
execução do orçamento federal, e não da previsão, percebe-se a dimensão dos
valores no período compreendido entre 1995 e 2001[11].
Na educação, o dispêndio manteve-se na média de 7 bilhões de reais ao ano; na
saúde, situou-se em curva ascendente, entre 10 e 21 bilhões; na previdência e
assistência, realizou-se em valores crescentes, entre 37 e 80 bilhões de reais.
O sistema brasileiro de
distribuição da receita arrecadada através da tributação, prever duas formas
básicas: 1) pela atribuição de competência para cobrar impostos sobre
determinadas matérias econômicas; 2) pela repartição – com Estados, Distrito
Federal e Municípios – da receita obtida pela União com a cobrança de
determinados impostos.
Cuidarei aqui do segundo
mecanismo, por conter mais equalibilidade, enquanto o primeiro depende de
variável como o perfil econômico e gerencial de cada unidade federativa.
A Tabela 1, abaixo, espelha as
transferências constitucionais realizadas pela União, nos exercícios fiscais de
1998 e 2003, para os cinco Estados brasileiros com melhor posição no
último IDH-E, valores totais e per capita em reais:
Tabela 1
Estados
|
Transferências em 1998
|
Transferências em 2003
|
||
Totais
|
Per capita
|
Totais
|
Per
capita
|
|
DF
|
80.767.233
|
39,37
|
183.331.039
|
89,37
|
SP
|
3.409.403.007
|
92,05
|
5.586.452.373
|
150,84
|
RS
|
1.261.168.506
|
123,79
|
1.921.921.484
|
188,64
|
SC
|
586.660.871
|
109,49
|
995.957.141
|
185,54
|
RJ
|
703.368.088
|
48,87
|
1.122.849.588
|
78,01
|
(*) O cálculo per capita foi realizado
com base no Censo 2000 do IBGE
A Tabela 2, na seqüência, representa idênticos números
relativos aos cinco
Estados brasileiros com pior posição no último IDH-E, valores totais e
per capita em reais:
Tabela 2
Estados
|
Transferências em 1998
|
Transferências em 2003
|
||
Totais
|
Per capita
|
Totais
|
Per
capita
|
|
AL
|
448.108.519
|
158,56
|
875.482.985
|
309,59
|
MA
|
844.321.577
|
149,23
|
1.559.536.185
|
275,65
|
PI
|
479.294.035
|
168,56
|
909.875.480
|
319,99
|
PB
|
554.865.732
|
161,07
|
1.058.539.012
|
307,28
|
SE
|
467.995.815
|
262,20
|
898.480.858
|
503,39
|
(*) O cálculo per capita foi realizado
com base no Censo 2000 do IBGE
Cabe um primeiro
registro: a Tabela 1 – dos cinco campeões de IDH – é composta pelo Distrito
Federal, por razões próprias, acompanhado de dois Estados da Região Sudeste
(Rio e São Paulo) e dois da Região Sul (Rio Grande do Sul e santa Catarina),
enquanto na Tabela 2 – dos cinco com pior desempenho – todos são da Região
Nordeste.
É óbvio que a
comparação entre os valores absolutos repassados aos Estados com melhor IDH
(Tabela 1) são sobremodo superiores àqueles destinados aos Estados com pior desempenho
nesse campo. Porém quando o confronto se faz entre os valores per capita, o
quadro é bem diverso: os Estados com pior IDH (Tabela 2) receberam recursos
proporcionalmente muito superiores. É certo também que a diferença entre
densidades demográficas deve ser levada em consideração.
Mesmo assim, a
escassez de recursos parece se sustentar só nos discursos. Houve crescimento
econômico com perfil regional bastante próximo, os repasses de recursos também
são substancialmente crescentes.
Contudo,
a exclusão se mantém. Seria conseqüência inexorável da posição geográfica ou as
gestões públicas nessa Região seriam ineficientes por sina própria ?
d.
A corrupção como obstáculo ao desenvolvimento
Não
é o caso de concluir que a corrupção seja o fator determinante desse
quadro, o que levariam outra conclusão, sem melhor de comprovação, de que nos
Estados com melhores índices de desenvolvimento humano a corrupção não
incidiria nos negócio públicos ou incidiria em grau não comprometedor.
A realidade
superficialmente exposta, mesmo com limitada base empírica, impõe uma reflexão
acerca dos fatores determinantes de índices sociais tão negativos, de pobreza
endêmica, de tamanha desigualdade, apesar do crescimento econômico e dos
elevados gastos públicos programados para as áreas sociais.
Não se pode deixar de
considerar a grande importância do modelo econômico que prepondera diversamente nas regiões
brasileiras, nem de atribuir peso razoável às diferenças climáticas. A
concentração da propriedade e das rendas, a escassez de chuvas, o modo
rudimentar de produção assinalam para a manutenção da pobreza, sem dúvida.
Não é verossímil ou seria
sobremodo simplório afirmar que o quadro dos Estados que apresentam os piores
índices de desenvolvimento humano, seja resultante da má sorte de sua
localização na Região Nordeste. O volume de recursos destinados a políticas
sociais indica possibilidade concreta de maiores e melhores investimentos na
educação, na saúde, na produção, em condições de moradia.
Segue-se daí que seus
índices de subdesenvolvimento social são decorrentes, também, de outras causas,
cuja identificação aqui não é possível esgotar. Dados os limites e objetivos
deste trabalho, considero relevante destacar: a) falhas de concepção em
alguns programas, b) deficiências na execução e no controle e c)
corrupção nas ações e políticas públicas pertinentes.
Os defeitos de concepção
são inevitáveis, até pela dimensão do País e suas diversidades. Os
planejamentos concentrados dificilmente atenderão bem a realidades tão
diferentes. O problema se agrava quando, já nessa fase, deixa-se de estabelecer
mecanismos eficazes de monitoramento, baseando-se, às vezes, na crença vã de
que os administradores e fornecedores agirão honestamente. Não se deixe de
considerar que a falha de concepção pode conter aquela brecha que irá
viabilizar o desvio de finalidade e proveito espúrio na execução.
As deficiências na
execução têm raiz na ausência de capacitação gerencial dos executores na ponta,
pela falta de estrutura administrativa da maioria dos Municípios, somada às
dificuldades e limitações no controle técnico e à ausência quase absoluta do controle social.
Postos esses
ingredientes, a corrupção grassa livre, alimentada pelo proveito do produto do
desvio, inclusive, no financiamento de campanhas eleitorais, e da quase total
impunidade.
Os números financeiros de
sua prática são imprecisos e de pouca visibilidade. Os dados judiciais não
os indicam, as pesquisas econômicas não
os dimensionam com precisão, mas fala-se em cifras nada desprezíveis: algo como
seis mil reais ao ano para cada brasileiro.
Seus nefastos efeitos
sociais são de difícil ou impossível reparação. Perversamente, o combate à
miséria e o apelo em prol do desenvolvimento, mantêm as emergências e os
grandes projetos de sempre (desemprego, fome, seca, transposição de águas do
Rio São Francisco) como generosos espaços para a corrupção em alta escala.
5. Estratégias de enfrentamento
Este nefasto fenômeno, de dimensão econômica, política
e social, é o sintoma, não é a doença. Enfrenta-lo sugere estratégias simples,
principalmente no campo preventivo, tais como:
1. A redução dos seus
benefícios e a elevação dos custos de sua prática,
2. A redução dos poderes
unipessoais dos agentes públicos,
3. Transparência sobre a gestão
pública, através do acesso a da divulgação dos dados,
4. Investimento em educação
política,
5. Capacitação da comunidade
para o controle social,
6. Aprimoramento e
independência institucional dos órgãos de controle técnico,
7. Ampliação de parcerias
institucionais, nacionais e internacionais.
O controle sobre os atos da gestão pública, na
sistemática brasileira, é realizado por organismos técnicos, integrantes dos
sistemas de controle interno – formado por auditorias dos próprios órgãos – e
externo, a cargo do Poder Legislativo respectivo, com o auxílio do
Tribunal de Contas correspondente, e
pela sociedade, através da participação nas entidades de controle social. Tudo
sem afastar a garantia constitucional de possível revisão pelo Poder
Judiciário.
Os órgãos de controle técnico têm a eficiência
limitada pelo reduzido quadro de especialistas, pela escassez de meios
materiais e pelo controle político sobre suas ações e deliberações.
Na experiência federal, as atividades dos Auditores
de Controle Interno são dirigidas e controladas por autoridade hierárquica
centralizada nacionalmente, até mesmo para atender a solicitações específicas
do Ministério Público.
No âmbito do Tribunal de Contas da União, seus
Auditores não gozam de qualquer autonomia, nem mesmo aquelas atribuídas, por
dever legal, a todo funcionário público, que, por exemplo, é obrigado a levar
ao conhecimento do Ministério Público a ocorrência de fato possivelmente
criminoso de que tomou ciência no exercício das funções. Tudo depende de
expressa deliberação do Tribunal ou do Ministro relator do caso. O desfecho dos
processos é demorado e nem sempre as decisões seguem as indicações técnicas.
Essa sistemática tem mantido o controle técnico
quase exclusivamente em atividades posteriores e com poucas ações de campo.
Raramente se conta com avaliação prévia ou concomitante à execução do programa.
A virtualidade impera, assim como preponderam as auditorias em papéis que nem
sempre expressam a realidade.
Já o controle comunitário tem a vantagem de está
presente na cena dos fatos, o que permite a seus integrantes perceber de perto
as táticas corruptas. Além disso, tem a prerrogativa máxima de impedir, pelo
exercício do voto popular, o ingresso ou o retorno do administrador corrupto à
cena política. Entretanto, sofre as fragilidades do baixo padrão de cidadania,
refletido na incipiência da organização da sociedade e no seu pequeno interesse
participativo, fruto da pouca prática democrática. Cria-se uma lógica negativa
perversa: o cidadão não aprende a exercer o controle social, porque não o exerce;
não o exerce, porque nunca aprendeu.
O Ministério Público tem atribuições e
prerrogativas constitucionais que o qualificam como veículo fundamental posto à
disposição da sociedade no combate à corrupção. Pode atuar diretamente, assim
como, apresentar-se com parceiro do controle
social e técnico; pode atuar tanto preventivamente, quanto manejar os
mecanismos sancionadores. Contudo, carece de conhecimento do fato e domínio técnico, em boa parte dos
casos e faltam-lhe recursos humanos capacitados em outros; é quantitativamente
pequeno para tantos e pode ser omisso em outros.
Enfim, enfrentar a corrupção não é tarefa fácil,
nem se pode esperar eficiência em ações isoladas, por mais categorizadas que
possam parecer. A interface entre o controle técnico e o controle social deve
ser vista numa relação de essencialidade e integração. Desse corpo surgirá
também maior eficiência nas provocações ao Ministério Público e na sua própria
atuação no Judiciário ou fora dele.
6. Conclusão
É indiscutível que as práticas corruptas, como a má utilização, o desvio, a
apropriação indevida de recursos públicos, atingem diretamente a cidadania. Não
só porque impedem o fluxo e a aplicação regular desses recursos nas ações e
serviços públicos, mas também porque geram intolerável descrédito nas ações do
Estado em favor de seus cidadãos, agravada pela disseminada sensação de
impunidade ou de punição tardia dos infratores.
Portanto, apresenta-se à sociedade e suas
instituições de defesa e promoção de direitos o desafio de enfrentar esse
nefasto fenômeno nas suas causas estruturais e nos efeitos deletérios
sobre a cidadania, notadamente no contexto das políticas públicas e dos
programas governamentais destinados à promoção de Direitos Humanos.
O ponto de partida consiste na indispensável
avaliação da eficácia sobre o quê e como temos, todos, realizado nesse campo,
visando aprimorar ações e estratégias de enfrentamento. A partir disso, fluirá
a necessidade de mecanismos sociais e institucionais integrativos e capazes de
contribuir para a efetividade da punição dos culpados e a busca de eficiência
dos programas sociais indispensáveis ao desenvolvimento.
Isso implica na necessidade de mudar
convicções e induzir atitudes; formar consciência política e capacitar a
comunidade para o exercício de direitos; aprimorar e tornar independentes os
agentes do controle técnico; aperfeiçoar e comprometer o Ministério Público no
combate à corrupção como prioridade. É tarefa para todos, como naqueles sonhos
que não se sonham só.
[1]
- Síntese da conferência proferida no painel de abertura do Seminário Internacional “O combate à corrupção dos
agentes públicos nos países do Mercosul”
em Porto Alegra/RS – dezembro de 2004
[2] - (Alexander Hamilton, The Federalist n. 78) Cf.
Luiz Roberto Barroso – Interpretação e
Aplicação da Constituição, ed. Saraiva, São Paulo, 3ª edição, 1999, pg 161
[1] - Importantes estudos sobre as
características, a ambientação e os efeitos da corrupção e seu enfrentamento
mundial: A Corrupção e a Economia Global. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2002, produzidos sob a responsabilidade do Institute for
International Economics.
[2] - Para os efeitos da corrupção
nas grandes economias, ver matérias recentes na grande imprensa mundial sobre
magníficas fraudes em balanços de companhia multinacionais e a influência nas
bolsas e nas relações entre o Estado e a economia.
[3] - A
Kroll e a Transparência Brasil realizaram uma pesquisa sobre percepções e
experiências com fraude e corrupção no setor privado brasileiro, realizada no
início do ano de 2002. Um total de 84 empresas participou do levantamento sobre
fraudes e 92 da pesquisa a respeito de corrupção. Neste trabalho, corrupção
é definida como o uso de cargo público para benefício particular, envolvendo
sempre um agente público e um agente privado; fraude é o processo de
enriquecimento ilícito ocorrido inteiramente no âmbito do setor privado.
O
resultado dar a dimensão de tais práticas: a. 70% das empresas declara
que já se sentiu compelida a contribuir para campanhas eleitorais e destas, 58%
declararam ter havido menção a vantagens a serem auferidas em troca do
financiamento. b. Metade das empresas consultadas que participam de
licitações dizem já terem sido sujeitas a pedidos de propinas referentes a
esses processos. c. Uma em cada duas empresas pesquisadas declara que já
foi submetida a pedidos de propina referente a impostos e taxas; o relaxamento
das inspeções é o principal “favor” obtido em troca de propinas. d.
Quase todas as empresas (86%) consideram a fraude uma ameaça e 65% dizem já terem
sido vítimas.
[4] - Sobre as relações entre
crimes, negócios e Estado: ERNEST MANDEL – Delícias do Crime. São Paulo:
Busca Vida , 1988, pág. 155 e seguintes.
[5] - Millor Fernandes representou esses sentimentos em charges hospedadas em
seu site oficial.
[6] - Elio Gaspari, em “A Ditadura
Envergonhada”, Cia. De Letras, 2002, faz referências a respeito, ao descrever as perspectivas e as frustrações
relatadas pelos Generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva da primeira
fase do regime militar de 64.
[7] - DA SILVA, JOSÉ AFONSO – Curso de Direito Constitucional Positivo.
Malheiros Editores, 11ª edição, 1996, pag. 104 e seguintes
[9] -
Os dados econômicos, demográficos e sociais foram colhidos no site do IBGE -
Brasil 2000.
[10] -
Para os registros sobre os Índices de Desenvolvimento Humano, foi utilizada e
base de dados o IPEA – Novo Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil e
Relatório do Desenvolvimento Humano 2002, disponível na Internet: www.undp.org.br
[11] -
Gastos por área social, excluídas as despesas com pagamento de pessoal. Fonte:
Secretaria do Tesouro Nacional.
[12] - Fonte: Secretaria do Tesouro
Nacional. Os valores correspondem ao que foi repassado para cada Estado, nos
períodos, à conta do Fundo de Participação Estados – FPE (constituído de
percentual das receitas do IPI e do Imposto sobre a Renda, de acordo com o
artigo 159 da CF) e do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental – FUNDEFE (constituído basicamente
com recursos retirados das receitas que compõem o FPE e o FPM, art. 60 do ADCT)
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